Antes que a crise na saúde suplementar se agrave

Regras claras e estáveis garantam previsibilidade ao setor e segurança jurídica às empresas e aos pacientes

Desde o início da pandemia, a saúde suplementar tem mantido tendência consistente de aumento do número de beneficiários. Em 2022, alcançamos 50,5 milhões de usuários nos planos médico-hospitalares, patamar mais alto desde 2014 e bem próximo do recorde histórico. É mais uma demonstração da importância que os brasileiros dão à cobertura prestada por operadoras de planos e seguros de saúde privados. Esta é a parte boa da história.

Por outro lado, as empresas do setor enfrentam sérias dificuldades econômico-financeiras. As receitas auferidas com contraprestações, ou seja, mensalidades, não têm sido mais suficientes para bancar as despesas assistenciais. Já são seis trimestres consecutivos de prejuízos operacionais, o que equivale a dizer que, desde abril de 2021, o negócio plano de saúde não consegue se pagar. Apenas em 2022, até setembro, o rombo acumulado chega a R$ 11 bilhões. Além disso, no terceiro trimestre a sinistralidade dos planos assistenciais – que representa quanto do que as operadoras arrecadam é repassado para pagar prestadores – chegou a 93,2%. Trata-se de percentual inédito desde que o setor passou a ser regulado no país, 24 anos atrás.

ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) avalia rotineiramente as condições financeiras das operadoras, observando de perto aquelas em que as receitas não cobrem as despesas assistenciais, ou seja, estão fechando suas contas no vermelho. Atualmente 262 empresas do setor estão nesta preocupante condição. Elas atendem mais de 20,3 milhões de beneficiários. Isto é, 40% da saúde suplementar brasileira lida hoje com severos problemas. Para se ter ideia, antes da pandemia eram apenas 160 empresas, que assistiam 5 milhões de usuários, nesta situação.

O que está por trás destas dificuldades é um brutal aumento de custos assistenciais, algo que a pandemia exacerbou. Um estudo patrocinado pela FenaSaúde e pelo Ibross (Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde) revelou uma quebra estrutural na tendência de longo prazo dos custos de medicamentos e materiais médico-hospitalares em decorrência do coronavírus. Em março de 2022, quando o estudo foi concluído, essa alta, que chegou a máximas muito mais elevadas, ainda variava de 30% a 41% quando comparada a fevereiro de 2020, mês imediatamente anterior à chegada da Covid-19 no Brasil.

As operadoras também têm se visto pressionadas pelo aumento da demanda por assistência, com a retomada de procedimentos eletivos que ficaram represados durante longo tempo na pandemia. Não raro, muitos destes casos chegam a clínicas e hospitais já agravados e demandam tratamentos mais caros. A frequência de uso da rede assistência também tem exibido movimento de alta. A tendência de encarecimento dos custos completa-se com o envelhecimento populacional, fenômeno que desafia sistemas de saúde do mundo todo.

A estes fatores conjunturais e estruturais, a saúde suplementar brasileira soma outro, tipicamente brasileiro: seguidas e constantes mudanças regulatórias, legislativas e jurídicas que abalam pilares do funcionamento do setor. Nos últimos meses, tornou-se comum a alteração de regras basilares, em particular as que definem a incorporação de novos procedimentos, medicamentos e tratamentos. As operadoras têm tido de arcar com novos custos, sem que suas receitas, constituídas pelas mensalidades pagas por famílias e empresas, consigam acompanhar.

Uma das mudanças veio a partir da medida provisória 1067, de setembro de 2021, posteriormente convertida na lei n° 14.307/2022, que acelerou o processo de incorporação. O que antes acontecia a cada dois anos, passou a ser feito de maneira constante, bastando a submissão do pedido de inclusão à avaliação técnica da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Desde então, ocorreram 16 atualizações do rol de cobertura obrigatória, pelas quais foram incluídos 51 itens, entre procedimentos, medicamentos, novas indicações e ampliações de uso.

Entretanto, a mudança de maior impacto aconteceu em setembro último, com a promulgação da lei n° 14.454/2022, que modificou o caráter taxativo do rol, criando condicionantes frágeis e muito subjetivas para obrigar planos a cobrir itens fora da lista. Trata-se de alteração crítica, pois interfere diretamente no funcionamento de um setor que opera com base no mutualismo e na adequada precificação dos riscos. Entendemos que este erro precisa ser rapidamente corrigido, a fim de que o caráter taxativo do rol, cuja composição tem evoluído continuamente desde a lei 14.307, seja restabelecido. Em linha, aliás, com o que havia decidido o Superior Tribunal de Justiça em manifestação recente.

A pandemia do coronavírus deixou ainda mais evidente a importância da complementariedade entre os sistemas público e privado de saúde, em conformidade com o que prevê a Constituição Federal. Planos e seguros de saúde podem, e devem, cuidar de mais pessoas, ajudando a aliviar o SUS, sobretudo em momento de severas restrições fiscais, como enfrentará o novo governo. Uma saúde suplementar que disponha de regras claras e estáveis, que garantam previsibilidade ao setor e segurança jurídica às empresas e aos pacientes é uma aliada indispensável para promover mais saúde para mais brasileiros.

Por Vera Valente, diretora-executiva da FenaSaúde